segunda-feira, 26 de março de 2012

CANTINHO DA LEITURA

Ao início da manhã, a aldeia de In-Amènas não tinha ainda retomado as suas atividades habituais: alguns camponeses altivos, envoltos nos seus bournous (mantos de lã com capucho), falavam em voz alta, bebendo chá de menta.
Um grupo de homens em pé rodeava dois jogadores de dominó que dispunham lentamente as suas pedras numa pequena tábua oscilante. Um nómada que transportava vários feixes de raízes secas esperava pacientemente um eventual comprador… Os camelos, habituados ao grande erg (deserto de areia), e nervosos por se encontrarem num local fechado, rodeado de arcadas, soltavam roncos insuportáveis.
Nas casas baixas de paredes sem janelas, ouvia-se de vez em quando o barulho de um tear. Na parte inferior das pequenas lojas sombrias, os mercadores dormitavam de leque na mão. Numa pequena sala do andar térreo contígua à mesquita, o velho Taleb, com uma longa cana na mão, obrigava todas as crianças de cócoras diante de si a repetir versículos do Corão, e o ruído surdo das vozes roufenhas dos pequenos perdia-se nas ruas estreitas…
Mas eis que chega, pela porta norte da aldeia, um homem montado num camelo. Com imponência e lentidão, penetra pela poterna e para. O viajante afrouxa a rédea do animal e inclina a cabeça sobre o peito. De repente, veem-no cair na areia. Os que bebiam chá, os jogadores de damas, os mercadores e os artesãos, todos se precipitaram na direção do pobre que tentava falar…
Revirando os olhos, o que podia ser entendido como a angústia de um moribundo, o viajante sussurrou algumas palavras incompreensíveis, ao mesmo tempo que apontava, com uma mão trémula, para uma grande bolsa de couro que trazia presa à cintura. Em seguida, elevando um dedo para o céu, recitou a Fatiha (oração diária) … A cabeça voltou a pender sobre o ombro… Estava morto!
A multidão que, entretanto, se tinha aglomerado, estava imóvel. Quem seria ele? De onde viria? Para onde iria? Ninguém era capaz de responder. Prepararam o cadáver e enterraram-no, no dia seguinte, num pequeno cemitério situado bem longe das casas, por detrás das primeiras dunas.
Na sala do café, foi decidido fazer o inventário dos objetos que o desconhecido transportava no seu camelo e dos que se encontravam nele. Numa das bolsas, roupas; na outra, diversos objetos indispensáveis aos viajantes; mas, na grande bolsa de couro negro que trazia à cintura, descobriu-se, com estupefação, um tesouro! Colares, braceletes, diademas, anéis, fivelas, pedras preciosas e peças em ouro amontoavam-se na mesa do café…

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Toda a gente se entreolhou em silêncio, mas todos pensavam o mesmo: “Que vamos fazer com estas riquezas? Reparti-las? Distribuí-las pelos pobres?” Estava instalada a discussão e cada um, querendo que a sua opinião fosse adotada, protagonizava uma rápida subida do tom de voz. Não tardariam as escaramuças. Seria mais avisado pedir a opinião da djemaa, o conselho dos anciãos.
Sob a autoridade do imã da mesquita, os dez anciãos de In-Amènas reuniram-se no dia seguinte. Foi decidido vender o camelo e o conteúdo das duas grandes bolsas e dar o dinheiro apurado aos pobres. Sábia decisão que todos aplaudiram. E o tesouro? Após longa e cuidadosa reflexão, o imã sentenciou que o tesouro seria enterrado na sepultura do desconhecido.
Esquecida a deceção, pensou-se que, afinal, fora esta a decisão mais acertada. Esse tesouro teria, porventura, despoletado invejas, rancores, porque cada um pensaria, certamente, que os outros teriam sido mais favorecidos que ele próprio. O tesouro desconhecido voltaria ao nada. Um buraco muito profundo foi cavado ao pé do túmulo e aí foi lançado o saco.

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Passaram-se meses, passaram-se anos… A pequena aldeia de In-Amènas já tinha esquecido o incidente e retomado a sua vida normal. Os camponeses bebiam chá, outros jogavam dominó, os mercadores dormitavam e as crianças recitavam versículos do Corão… quando um dia, de repente, ecoaram imensos gritos que pareciam vir do cemitério… Quem podia gritar daquela maneira? Toda a gente correu na direção das sepulturas e, no sítio da do viajante desconhecido, viram o imã deitado ao pé da cova com os braços enterrados no buraco que havia escavado. Era ele que soltava aqueles gritos terríveis…
Os primeiros que chegaram puxaram-no pelos pés para o tirar daquela posição deplorável. Tempo perdido! As suas duas mãos estavam presas à bolsa de couro negro que parecia tão pesada como um rochedo de várias toneladas… Toda a gente compreendeu, então, que o imã tinha querido recuperar o tesouro e que se tinha ordenado que o enterrassem era para, mais tarde, o poder reaver…
Mas, no imediato, era necessário tirá-lo daquela posição miserável. Puxaram-no pelos braços, pelas pernas, pelo corpo… Em vão! Os mais caridosos construíram um pequeno abrigo de palmas sobre a cabeça do imã, evitando, assim, uma insolação. Só ao fim da tarde, vencido pela dor, é que o imã se sentiu obrigado a reconhecer a sua falta diante de toda a aldeia, que, entretanto, se tinha reunido à sua volta:
— Não passo de um ganancioso! Sou indigno da vossa confiança. O que fiz não tem perdão. Quis recuperar o tesouro e guardá-lo só para mim!
Mal acabou de proferir estas palavras, as mãos separaram-se da bolsa… Mas, quando se pôs de joelhos diante da sepultura, apenas tinha dois tocos queimados pelo fogo nas extremidades dos braços. Apressou-se a deixar a aldeia e foi esconder a sua vergonha numa das montanhas de Aïr.
Voltaram a tapar o buraco escavado pelo imã e todos tentaram esquecer o incidente.
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Contudo, seria possível esquecer que na sepultura do viajante havia um tesouro digno de um rei? Seria possível ignorar que esse ouro poderia transformar um pobre camponês num senhor ainda mais rico que um sultão?
Ali não pensava noutra coisa, e refletia sem cessar… Foi assim que arquitetou um plano que lhe permitiria, no seu entender, recuperar o saco sem lhe tocar… Ali era burriqueiro. Ganhava a vida a transportar, com o seu animal, pedras, areia ou legumes. Montado no dorso do burro, tinha muito tempo para pensar no desenrolar do seu plano. No entanto, decidiu esperar alguns anos, o tempo necessário para fazer cair no esquecimento o que se tinha passado.
Quando chegou o momento que lhe parecia mais propício, saiu de noite e dirigiu-se ao cemitério. Tirou uma das duas pedras presas na sepultura e, com a pá, cavou um buraco onde sabia que se encontrava a bolsa com o tesouro. De facto, descobriu a bolsa de couro com as duas mãos do imã enegrecidas ainda coladas a ela, uma de cada lado. Não tocou em nada e, sentado junto à sepultura, esperou o nascer do sol.
De manhã, viu caminhar na sua direção o pequeno Mohamed. Mohamed era demasiado jovem para ter ouvido falar da bolsa com o tesouro. Conduzia um burro e dirigia-se ao palmeiral. Ali levantou-se e pediu-lhe que tivesse a amabilidade de descer à cova a fim de reaver a bolsa que, inadvertidamente, lhe tinha caído.
Mohamed parou e olhou para a bolsa no fundo do buraco:
— Mas por que é que tu não a podes ir buscar?
— Porque fiquei com uma dor nas costas, ontem ao fim do dia, — respondeu Ali, agarrando-se aos rins e esboçando um esgar de dor — não me posso baixar.
— Nesse caso, segura o meu animal que eu vou buscar a tua bolsa.
Mohamed desceu à cova, pegou na bolsa e subiu. Não viu que as duas mãos do imã se soltaram e rolaram para o fundo do buraco.
— Toma a tua bolsa — disse.
Ali estava felicíssimo: a maldição deixara de existir! Aproximou-se, agradeceu a gentileza a Mohamed e pegou na bolsa. Mas, de repente, soltou gritos de dor. As suas duas mãos ficaram presas à bolsa de couro e Ali quase desmaiou… E a bolsa rolou para o fundo da cova, arrastando-o com ela! Uma fumaça espessa emanava do corpo, que se calcinava, espalhando um odor infeto. Mohamed estava aterrorizado e não compreendia o que se passava; tentou puxar o seu companheiro pelos pés, mas depressa desistiu.
Alertados pelos gritos inumanos do ladrão, os habitantes da aldeia reuniram-se de novo à volta da sepultura… Os mais velhos sabiam muito bem o que estava a acontecer e pediram a Ali para reconhecer rapidamente a sua falta.
— Perdoai-me. Quis roubar o tesouro do viajante. Sou um ser indigno!
Nesse preciso momento, as mãos do ladrão separaram-se dos braços e permaneceram coladas à sacola. Quando se levantou, verificou que apenas tinha nas extremidades dos braços dois cotos enegrecidos pelo fogo do inferno. Apenas lhe restava fugir da aldeia se não quisesse ouvir as reprimendas dos amigos.
Mas a lenda não acaba aqui… Os anciãos da aldeia de In-Amènas reuniram-se e decidiram fazer desaparecer para sempre a bolsa que já tinha provocado tanta dor! Pediram, então, a Mohamed, para pegar nela – ele que nunca tinha pensado em roubar podia pegar-lhe sem dificuldade – e imploraram-lhe que a escondesse na montanha. Foi o que fez… e, logo que voltou à aldeia, ninguém lhe perguntou nada.

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Pois bem, amigos, estão avisados: se, um dia, encontrarem numa gruta da montanha de Tassili N’Ajjer uma bolsa de couro negro, não toquem nela! Sabem bem o risco que correm!
Os anciãos de In-Amènas que contam esta lenda acrescentam para concluir: “A bolsa do tesouro é o que tu desejas. As mãos queimadas são os remorsos que te farão sofrer se pegares no que não te pertence. E o jovem Mohamed, que pode tocar na bolsa sem se ferir, é a felicidade prometida àquele que não tem maus pensamentos. No entanto, a bolsa escondida na montanha é também a esperança de nos tornarmos ricos um dia, mas na condição de sermos tão puros como o pequeno Mohamed! Parece não haver muita esperança para nós… mas, quem sabe? …”
André Voisin
Contes traditionnels du désert
Toulouse, Ed. Milan, 2002
(Tradução e adaptação)

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